Caminho Espiritual do kung fu

    É comum o principiante de Kung Fu ver nesta arte apenas o seu lado físico, suas técnicas de combate, sua aplicação prática à defesa pessoal.
    É preciso que o estudante de Kung Fu evolua em tempo de prática e em amadurecimento pessoal para que possa compreender sua arte como um todo e não apenas como um grupo isolado de técnicas combativas.
    A medida que o praticante vai progredindo em seus treinos vai conseguindo desempenhar as técnicas com grande habilidade. Lançará chutes e socos com perfeição, fará bloqueios e esquivas com eficiência, será capaz de entrar em uma luta com uma certa tranqüilidade e segurança construída através de sua confiança na capacidade de desferir e defender golpes, mas ... Estar condicionado fisicamente poderá capacitá-lo a cuidar-se e a defender-se em situações de agressão mas ... Um boxeador razoável ou mesmo qualquer outro tipo de lutador teria obtido os mesmos resultados. Para falar a verdade, teriam chegado ao mesmo ponto de perfeição técnica talvez em até menos tempo, dada a sofisticação dos movimentos do Kung Fu tradicional.
    Aí é que está a questão. O mundo tem atravessado fases progressivas que tem originado uma contínua busca de meios mais eficientes de se realizarem as coisas. Visto deste ângulo os movimentos floreados que caracterizam a maioria dos estilos mais convencionais de Kung Fu são um contra-senso no que concerne a essa busca de eficiência. Razão mais que suficiente para que esses estilos desaparecessem sem deixar vestígios, tragados pelo oceano do tempo ... Certamente não será porque os movimentos bonitos são apreciados, porque imitem animais, ou porque se parecem com os desempenhos de Chen Kwan Tay, Alex Fu Sheng, Jacky Chan ou Bruce Lee.
    Seriam razões imbecis demais para não dizer ilógicas.
    O que terá preservado o Kung Fu ao longo de tão remotas eras até os nossos dias apressados e estressantes ?
    Temos que admitir que a plasticidade dos movimentos mesmo o desempenho cinematográfico de alguns artistas têm dado seu quinhão para a preservação dessa arte, mas só isso não teria bastado para preservar-lhe o lugar no panteão das artes marciais.
    São de outro tipo as razões que buscamos.
    O que tem mantido o Kung Fu durante todo esse tempo, assegurando-lhe a posição da mais antiga das artes marciais é a sua profunda atuação sobre as questões fundamentais da pessoa humana através de ensinamentos e tradições filosóficas que atingem o eu interior transmutando-o e transcendendo-o.
    A filosofia do Kung Fu orienta o praticante para o enriquecimento do eu, a transcendência do mundo ilusório dos sentidos, nos prevenindo que a sabedoria não é aquele regurgitar de informações obteníveis através das escolas e demais instituições de ensino, mas sim, o domínio dos diferentes aspectos da vida diária.
    A moderna psicologia e disciplinas afins, têm nos transmitido conhecimentos enriquecedores sobre o mundo da mente mais ainda se perdem em conjecturas no que concerne ao transcendental.
    Existem esforços nesse sentido e até têm surgido estudos da incipiente psicologia transpessoal, mas onde essas disciplinas têm se reportado para coletar subsídios as suas conclusões ? Têm recorrido à culturas orientais, ao budismo, aos fenômenos para-normais presentes às filosofias indianas, chinesas e japonesas e, as religiões primitivas.
    E aí nós temos a maior riqueza do Kung Fu.
    Você lembra de uma das séries de maior sucesso na televisão brasileira - Kung Fu - com David Carradine. Provavelmente se lembrará que não era o desempenho marcial que mais chamava a atenção para a série, mas sim, o comportamento filosófico e altamente espiritualizado do personagem principal - Kway Chang Keyne.
    Dentre as mensagens que o Kung Fu nos transmite com o objetivo de nos levar a uma maior vivência espiritual e a uma transcendência do eu, a percepção ocupa um lugar de proeminência.
    O personagem do filme da televisão nos demonstrava uma intensa vivência perceptiva, na qual ele aprendia a lidar com os fatos do dia a dia, baseado nas percepções que esses mesmos fatos faziam brotar de seu interior.
    Mas para que isso aconteça é necessário que haja uma mente aberta, a estreiteza mental torna impossível a percepção do Kung Fu como um todo.
    Podemos compreender a motivação que leva algumas pessoas a praticar o boxe ou outras modalidades esportivas; mas o Kung Fu não se restringe às práticas físicas e temos que convir que o tipo de pessoa que está em busca da realização interior não se contentaria com as práticas esportivas convencionais que outros estilos de luta lhe oferecem.
    É bem verdade que os ensinamentos espirituais do Kung Fu são transmitidos entremeados em diferentes técnicas marciais, mas também é verdade que muitas dessas técnicas são preservadas apenas pela sua atuação como pano de fundo para a transmissão de conhecimentos a uns poucos iniciados.
    É fato que somente um longo aprendizado calcado no auto-sacrifício e na disciplina rígida transformará um indivíduo em Mestre, mas nem todo Mestre é bom professor e nem todo professor é um Mestre. Por Mestre entende-se aquele que tem maestria, que sabe dominar, controlar e dirigir alguma coisa.
    Em se tratando do Kung Fu essa qualidade é pertinente ao domínio dos diferentes aspectos da vida em si mesma.
    Um Mestre de Kung Fu será reconhecido por seu caráter probo no desempenho das obrigações do dia a dia, por seu comportamento ético e moral diante da comunidade, pelo fiel cumprimento de suas responsabilidades e não apenas por seu desempenho de luta.
    Por outro lado, um excelente professor das técnicas físicas do Kung Fu, que não cuida de seu auto-aperfeiçoamento, que desdenha seu desempenho em outras áreas de sua vida, que subestima o aspecto espiritual de sua arte, jamais será um Mestre de Kung Fu.
    Somente um contínuo questionar do que é ensinado e do conseqüente submeter dessas verdades parciais à vivência de sua percepção interior irá capacitá-lo a compreender o sentido mais profundo das coisas. Não importa a profunda dimensão dos ensinamentos de um Mestre, seja ele um Budha ou um Cristo, somente o que você conseguir descobrir por si mesmo poderá convencê-lo e influenciá-lo profundamente.
    Apenas a compreensão deste princípio poderá torná-lo consciente do lado espiritual de sua natureza, que no início das práticas do Kung Fu estava escondido pelo medo, pelo temor e pela falta de auto-consciência.
    Por exemplo, quando o principiante de Kung Fu passa por uma situação conflitante, suas emoções tendem a dominá-lo e ele se torna incapaz de controlar as alterações de seu comportamento - sejam elas físicas ou verbais.
    Quando com o prosseguir da prática, seguindo os ensinamentos de seu Mestre e os caminhos do autoconhecimento, outra situação conflitante surgir, o praticante perceberá que juntamente com a auto-percepção vem a capacidade para preparar a si mesmo da forma mais apropriada para reagir a tais circunstâncias - e não necessariamente a mais agressiva.
    É evidente que essa capacidade de autocontrole será resultante de um mais elevado estado de consciência que, aliás, não é fácil de ser atingido, mas as dificuldades que forem surgindo poderão ser facilmente contornadas desde que o praticante de Kung Fu esteja recebendo orientação de um verdadeiro Mestre.
    O processo de discriminação aconselhado por Patanjali em sua obra - "Aforismos do Yoga" - é de saudável aplicação nesse processo. Esse método aconselha a interrogar-se interiormente a respeito de todos os acontecimentos emocionais que possam ocorrer.
    No exemplo anteriormente dado, ao passar por uma situação conflitante que gerem emoções que escapem ao controle do praticante, este deverá submeter-se a si mesmo às seguintes perguntas: "será isto necessário ? Será necessário ficar irritado ? É preciso perder o controle ? Não haverá uma outra maneira de enfrentar estes fatos ?".
    Com o passar do tempo e a prática contínua do processo de discriminação tornar-se-á gradualmente mais consciente de si mesmo e portanto mais capaz de controlar-se e amadurecer emocionalmente.
    Outro hábito que deveria ser cultivado é o hábito da meditação direcionada.
    É um método de meditação no qual você direciona sua mente para a revisão dos fatos e acontecimentos do dia, ao invés de concentrar-se num som mântrico ou num desenho yântrico.
    A meditação direcionada é surpreendentemente poderosa para o controle emocional e para a auto-educação, sendo verdadeiramente milagrosa para a transformação do caráter e para o amadurecimento da personalidade.
    As escolas iniciáticas do Kung Fu, dentre as quais destacou-se o Templo Shaolin, atribuíam maior importância aos assuntos espirituais do que aos assuntos físicos. O verdadeiro espírito do Kung Fu está presente na vida diária, o praticante de Kung Fu deve treinar e desenvolver seu corpo e sua mente em espírito de humildade e será nas ocasiões difíceis que deverá se esforçar ainda mais por fazer prevalecer seu senso de justiça.
    Ao passo que nas artes japonesas e coreanas o principiante se esforça para obter a faixa amarela e depois a verde e assim por diante até a preta, nas artes marciais chinesas, onde não existem faixas, o praticante direciona sua busca no sentido do aprimoramento pessoal e da obtenção do mérito moral que nestas artes são muito valorizados.
    Com isto não se quer dizer que nas artes japonesas e coreanas não exista um caráter ético-filosófico ao nível do Kung Fu, muito pelo contrário, quem quer que tenha lido as obras de Funakoshi ou apreciado extratos das vidas dos grandes líderes budistas que outorgaram nomes aos Kihons mais avançados do Taekwondo, certamente saberá avaliar e respeitar essas artes irmãs.
    O que objetiva frisar é a importância que o praticante do Kung Fu deve atribuir ao aspecto espiritual de sua arte e à substituição da agressividade gratuita, típica dos homens inferiores, pelo cultivo das qualidades do espírito que têm caracterizado os grandes mestres do passado.
    O auto-aperfeiçoamento é um trabalho árduo e gigantesco através do qual o praticante do Kung Fu imola suas próprias paixões, vícios e imperfeições diante do conhecimento interior, do auto-conhecimento e da auto-disciplina.
"O Conhecimento vem de seu instrutor.
A Sabedoria vem de seu interior."